12 de maio de 2008

via latina







Saí de casa trajado, coisa rara, por respeito simbólico à minha Universidade. O sol cruzava-se com brisas frescas, num dia colorido que adiantava a Primavera. Foi o primeiro dia de Março de 2008. No auditório da Reitoria procurei o meu lugar. Sossegado vi a sala encher. Sossegado ouvi o discurso da abertura solene, ouvi os nomes dos premiados, das dezenas de homenageados e das dezenas de novos doutorados. Sossegado espantei-me vendo a sala esvaziar-se. Dez minutos antes aquela sala estivera praticamente cheia. Quase só, assisti a mais um lançamento da Via Latina. Quase só voltei para casa, encolhido de vergonha por quase só ter saído do auditório. Apeteceu-me despir o fato preto e ler a ¡Hola! de bermudas e sandálias… para sempre!

Na inauguração da X Semana Cultural da Universidade de Coimbra deste ano a Via Latina premiou a cultura portuguesa com o lançamento de «nas linhas da imaginação», o quinto número da sua sexta série. Sexta série é desde logo sinónimo de tempo e de tempos e legitima por isso os vários formatos que a Via Latina já conheceu. Desde 1889 já foi jornal, já foi revista, já teve periodicidade regular e não, esteve com e contra o poder. Contou com a participação dos mais consagrados nomes do círculo intelectual português cumprindo sempre a função para a qual foi desenhada – um palco de discussão intelectual - conferindo ser uma das mais importantes publicações da Universidade de Coimbra.

Olho o panorama nacional actual onde os agentes da cultura lutam para teimosamente sobreviverem. Num país e numa universidade onde a produção e o consumo de cultura roçam níveis indesejáveis, não pude recusar animado a oportunidade de participar neste projecto e nesta edição da Via Latina. E convidei um amigo.



(texto publicado na Via Latina número5 sérieVI)

A criação como (des)ilusão prática da imaginação

João Crisóstomo*, Luís Loureiro**


Seria formidável se a obra fosse uma reprodução fiel da ideia imaginada.

É difícil falar da imaginação, por ser um processo tantas vezes tão consciente como andar, falar ou ouvir. Antes existe o vazio, depois o problema. Usamos da imaginação de forma muito prática para dar resposta a problemas com que nos deparamos no nosso quotidiano. Ou a uma equação mais difícil que nos propusemos resolver. Quanto mais complicado for o problema a resolver e mais limitados os recursos ao nosso dispor, mais engenhosa terá que ser a ideia que lhe dará resposta.

A imaginação não é, naturalmente, infinita. Não existe tal coisa como um infinito de ideias. Basta não nos ser possível imaginar uma coisa. Não imaginamos nada que não tenhamos de certa forma experimentado, ou que de certa forma não compreendamos. ‘Não imaginamos uma cor fora do espectro solar’1. Neste caso, o infinito menos um será igual a finito. Mas as possibilidades da imaginação serão ainda assim substancialmente maiores que as possibilidades da criação.

A imaginação revela-se sendo uma capacidade mental de representação do ausente. É uma propriedade do ser humano que lhe permite concretizar num plano abstracto uma noção, uma ideia que não é fisicamente palpável.

Immanuel Kant disse um dia que ‘a felicidade não é um ideal da razão mas sim da imaginação’2. Quereria Kant dizer que somos tanto mais felizes quanto menos pensarmos como diria Alberto Caeiro? Ou que a imaginação é um caminho inequívoco para a felicidade? Ou que a felicidade só existe no plano do imaginário? Talvez Kant quisesse dizer que a imaginação é um universo de produtos não racionalizados, de ideias. De situações que não são noutro cenários possíveis. Porque na nossa imaginação a grandeza, a força, a virtude, estão à distância de um pensamento. E por não haver obstáculos na criação desses universos, desses contextos idílicos. Platão acrescenta. A realidade não é senão a projecção imperfeita da ideia imaginada. 3 Assim, as coisas são cópias imperfeitas das ideias que lhes deram origem.

Falemos portanto da criação, que é a transformação em coisa da ideia imaginada.

Muitas vezes, neste processo de geração de uma ideia que dará resposta ao problema sentimos uma frustração igualmente inconsciente, porque a ideia que concebemos está ainda longe de ser uma solução concreta, porque não está ao nosso alcance a reprodução mimética da ideia em forma de solução e nem sempre está igualmente ao nosso alcance uma reprodução aproximada e eficiente. Quem nunca viu um poeta desesperado?

É este processo de transformação do mental em facto, através da criação, que se revela imperfeito. De uma outra forma, a imaginação é, por oposição ou não, um complemento da lógica e da linearidade racional. Não sendo lógica nem linear, a imaginação ao aparecer representada em obra pela criação obriga a que esta seja naturalmente imperfeita, imperfeita por comparação com a representação mental imaginada. Seria portanto formidável se o produto da nossa imaginação fosse uma sua reprodução fiel.

Explicamos. A criação não pode ser uma reprodução mimética da ideia porque o nosso universo imaginário é muito mais vário e muito menos sujeito a interferências externas do que a nossa criação. Para pintar um quadro, por exemplo, é precisa naturalmente uma ideia. Mas é precisa igualmente uma resposta eficaz da mão à ideia. A mão tem de saber responder a esse impulso. Ainda assim a ideia jamais será transmitida da forma imaginada, por muito que expliquemos que o quadro é sobre isto ou aquilo e que este borrão é uma pessoa, aquelas linhas são uma estrada, e por ai em diante.

Muitos indivíduos seriam artistas natos se a criação fosse uma consequência directa da ideia imaginada.

Seria então tão ou mais formidável se a criação fosse uma consequência directa da ideia imaginada. No mundo feito de ideias não contariam aspectos como a eficácia, a resistência, a persistência, a prática ou o engenho do ofício. Contaria apenas a qualidade da ideia. A única coisa a educar seria o pensamento.

Mas não é.

Posto de outra forma, a criação é a procura da melhor maneira de compor códigos. A imaginação é primeiramente parte integrante do domínio privado, a imaginação é nossa. Por seu turno, a criação, enquanto obra, revela-se do domínio público, é lida, vista, sentida por um conjunto alargado de pessoas. E por isso tem de ser entendida. Entendida de uma ou outra maneira. No limite talvez nem seja entendida, mas será sempre uma tentativa de linguagem, de expressão. A imaginação é de um domínio privado, uma vez que se mede por códigos pessoais e intransmissíveis. Uma ideia pode até ser partilhada por um grupo, se o grupo partilhar de uma linguagem própria que assim como codifica, descodifica determinados conceitos, formas ou imagens. Por isso a imaginação não deve explicações a ninguém. Mas a ideia criada, construída, passa imediatamente a pertencer ao domínio público.

Mais importante que isso, a necessidade de concretizar em obra a imaginação faz com que a ideia ultrapasse esse domínio de certa forma descomprometido, para o domínio dos outros, sob a avaliação de outros imaginários. E porque a criação não é nunca uma repetição da ideia, o processo de produção artística tem que ser necessariamente difícil. Mesmo assim, muitas vezes a obra criada surpreende a própria imaginação. A criação tem dez por cento de inspiração e o restante de transpiração. O trabalho sobre o acto criativo, a tal busca da melhor maneira de compor os códigos e os elementos compositivos de uma criação, pode levar a um resultado inconscientemente superior ao imaginado. A procura da ideia, tantas vezes esgotante, é o primeiro passo de um processo longo de experimentação, avaliação e correcção, nas artes como nas ciências, nas humanidades, nas filosofias, na antropologia, em tudo. A arquitectura é um exemplo nato que unifica estes três factores. Primeiro é precisa uma ideia, depois julgar a ideia na medida das limitações da sua reprodução e por último torna-la legível e adaptável a outras pessoas, outras linguagens.

"Deus quer, o homem sonha, a obra nasce". 4


Referências bibliográficas:
1 FERREIRA, Virgílio, Pensar, Lisboa, Bertrand editora, 7ª edição, 2004 (pág. 9)
2 http://en.wikipedia.org/wiki/Immanuel_Kant (em 1/01/2008)
3 OLAIO, António, Ser um Indivíduo Chez Marcel Duchamp, Porto, Dafne editora, 2005
4 PESSOA, Fernando, Mensagem, «O Infante», Lisboa, Assírio e Alvim, 2004 (pág. 49)


*aluno do 5o ano do Darq-FCTUC, director da revista nu

**aluno do 5o ano do Darq-FCTUC, erasmus na VDA de Vilnius

Um comentário:

The Vilnius Times disse...

e eu agradeci o convite

aquele abraço